I – Escola José Gonçalves de Albuquerque
Usei uma camiseta branca com uma flor bordada pela minha mãe, um jeans baixo, e meu velho e bom tênis. Meu cabelo ralo sempre preso, e a mochila nova que eu comprei quando ainda morava na cidade, estava com um caderno de 12 matérias, meu bom diário, e algumas canetas. Ainda não sabia qual o horário de aula, por isso não estava levando os livros. Tomei café na cozinha enquanto a dona Vânia preparava alguma coisa pro almoço. Eram 6:40 quando sai pela porta da cozinha, fui em direção ao carro. Minha mãe já estava lá dentro me esperando. Ouvi o Manoel chamar meu nome e virei pra vê o que era.
- Boa sorte no seu primeiro dia de aula.
– Vou precisar? – Perguntei apreensiva. Manoel já estava indo pra estufa. Seu sorriso hoje estava inacreditável. Foi andando comigo até o carro. Agora eu já estava mais acostumada com sua presença, então já soltava umas frases perdidas.
– Humm... Não. Espero que não – Ele sorriu – Algumas pessoas vão ser arrogantes com você, mas não se preocupe... Eu não entendi, mas já estava abrindo a porta do carro. Então acenei dando tchau, e entrei. Fiquei olhando o Manoel descer o jardim em direção a estufa enquanto minha mãe dava ré no carro.
Seguimos pela estrada cercada de árvores. Dessa vez não passamos pela vila, fomos por uma rua um pouco antes dela. Levou uns 20 minutos. Enfim chegamos.
Enorme! Na cidade não existia igual aquela. Eu sorri por dentro com meu pensamento ridículo de que seria embaixo de uma árvore, e riscaríamos em pedras. Tinha um gramado imenso, e lá encima do morrinho ficava a escola. Provavélmente tinha sido um casarão antes. Aparência de ter sido restaurado. Janelas perfeitas. Nossa, fiquei incredúla com a beleza do lugar. Tinha várias pessoas, sentadas no gramado, andando felizes, subindo as enormes escadas até a porta principal. Meus olhos viram tudo rápidamente, e os narizes também. Que graça há nisso! Meu narizes agora eram bem mais rápidos.
Minha mãe estava do meu lado me acordando.
- E então o que achou? – Fiquei calada. Ainda tentei falar, mas não consegui. Então ela riu e disse:
- Chama-se: Escola José Gonçalves de Albuquerque. Nome do seu tataravó. Ele morou ai e o pai dele também. Foi quando começaram a colher as flores e levar pra vender na cidade. Até criarem esse imenso comércio que temos hoje. – Ela deu uma pausa para vê como eu estava digerindo aquelas novidades. Então sorriu quando me viu de boca aberta olhando-a. Me abraçou.
– Querida, me desculpe nunca ter lhe dito sobre nossa família. Depois falamos sobre isso. –
Ouvi quando o sinal tocou.
- Quer que eu te acompanhe até lá encima? – É claro que eu não queria! Ela entendeu pelo meu olhar.
– Tudo Bem. Então, as 13:00 eu venho te buscar.– Me deu um beijo na testa e entrou no carro.
Meus pés estavam fincados no chão involutariamente. Inspirei fundo e dei o primeiro passo. Sentia todos me olhando, mas eu não consegui olhar dos lados para ter certeza disso. Segui em frente, quase que como um parasita andante. Subi cada degrau trêmula e infeliz. Se eu não me sentia confortável sentada numa mesa com minha mãe, e mais três pessoas desconhecidas, então como eu me sentiria em um lugar imenso cheio de pessoas sorridentes me olhando torto? Eu era uma pequena formiga cercada por enormes mamíferos. Sentei na carteira encostada a janela que dava pra uma paisagem linda, preenchida por montanhas. A sala estava tumultuada por menininhas se abraçando felizes, e menininhos conversando em voz alta. Eu estava com as mãos juntas em um sinal de nervosismo quando olhei pra trás devagar, e notei uma garota ruiva olhando pra mim. Ela não tinha vergonha de me olhar! Não disfarçava como os outros, ao contrário, me olhava prontamente. Cirrando os olhos com curiosidade, como quem tenta descobrir quem eu sou. Quando bati os olhos nos dela, eu virei rapidamente, despreparada. Ela tinha uma aparência forte, insondável. Um ruivo intenso como fogo, olhos azuis como o céu ao meio-dia, a pele limpa e branca perfeita. Com o rabo dos olhos notei que ela continuava olhando pra mim, e não falava com ninguém. Provavelmente devia ser novata como eu.
Então todos se sentaram, e a professora entrou na sala com um sorriso iluminado que ia de uma orelha a outra. Ela era nova, uns 30 anos, usava óculos, cabelo preso, e era tão baixinha mesmo de salto alto. Quando começou a falar achei graça no seu jeito. Simples, e tão simpática. Foi o mesmo lenga-lenga de todos os primeiros dias de aula. Finalmente chegou aquela hora que eu odiava. Cada um levantaria e diria seu nome a todos. Dessa vez foi acrescentado o que queriamos ser, e quantos anos tinhamos. Pensei por um instante: ‘O que eu quero ser?’ . Não prestei muita atenção na apresentação dos outros. Não queria mesmo fazer aquilo. Minha cabeça estava cheia de coisa quando Claúdia, a professora, apontou pra mim. Eu arregalei os olhos, e paralisei. Todos sem exceção me olhavam, concerteza sabiam quem eu era e estavam curiosos sobre meu jeito. Numa vila com menos de 2000 habitantes as noticias voam em fleche, então eles deviam saber sobre meu ateísmo, meus traumas, minha antipátia, e é claro o que provoquei na velha Lurdis que era conhecida por todos. Pensei em tudo isso em um segundo, calada olhando para Claúdia.
- Então querida pode se levantar e dizer seu nome? – Ela estava do meu lado, com seu cheiro de perfume cídrico quase me engasgando, e me olhando atenciosa. Eu olhei para tráz, e a garota ruiva estava com um sorrisinho cínico na minha direção. Ela parecia se comunicar comigo, eu podia jurar que a ouvir me xingar de covarde. Então levantei na mesma hora que esse pensamento me veio em mente. Virei para professora, e disse baixinho, quase que como um sussurro:
- Olga – Ela sorriu. Todos os olhares ainda estavam fixos na minha direção, continuei: - Tenho 17 anos, e quero ser... jornalista. – Como meu pai. Fiquei aliviada quando terminei de falar, e sentei. Bastou me encostar na cadeira e ouvi quando alguém disse: - Com uma mina de flores quer ser jornalista? – E todos riram. Riram pra valer. Eu procurei curiosa quem havia dito isso, mas não pude saber. Claúdia precisou bater palmas para retornar a atenção da sala. Mas todos eram muito disciplinados, e pararam de rir. Enfim quando todos os olhos pularam para o garoto sentado depois de mim, eu respirei aliviada e olhei pela janela, um vento fresco me acalmou.
Era vez da menina ruiva. Eu não me virei para olhá-la, seu timbre era forte e cheio de coragem.
– Meu nome é Ashyla. Eu tenho 17 anos e, bom... Ainda não sei o que quero ser! – Ela riu quando disse isso, fazendo todos rirem juntos. Tinha todo jeito de quem seria bastante popular. Eu desprezei o sorriso de todos.
Aquelas duas primeiras aulas passaram lentas e dolorosas pra mim, todos pareciam se divertir com a professora de biologia baixinha e simpática. Eu estava rabiscando poesias toscas no meu diário quando o próximo professor entrou na sala, chamava-se Paulo igual ao pai do Manoel, isso me fez lembrar dele. Paulo era professor de história. Eu gostava de história, me interessei pelo modo como ele falava sobre tal. Mergulhava de olhos fechados naqueles temas do feudalismo, iluminismo, e tudo mais. Era super empolgado, e passava essa energia a todos na sala.
As dez tocou para o intervalo de meia hora. A maioria saiu para lanchar, ou simplismente para sentar na grama do jardim e ficar conversando. Eu nem me movi da cadeira, estava debruçando minha cabeça sobre a mesa quando um menino magro com o cabelo meio assanhado propositalmente se aproximou:
- Oi. Tudo bem com você? – Ele era um desses malucos super simpáticos. Eu fiz que sim com a cabeça, reparando que ‘Ashyla’ observava da porta nossa conversa. Ele continuou:
- Então, vai ficar por aqui mesmo? Por que não sai um pouco? – Dessa vez não respondi nada, estava com os olhos estancados na menina ruiva e séria me encarando. Ele percebeu:
- AH, não liga pra ela! Faz isso com todas as novatas! Ashyla é assim mesmo, depois você se acostuma – Então deu uma pausa me olhando, reparei que ele estava nervoso. – Meu nome é Eduardo. Bom, eu to indo... tem certeza que vai ficar ai? – Novamente fiz que sim com a cabeça. Então ele saiu cumprimentando as outras pessoas na sala. Olhei na porta e Ashyla já não estava mais lá. Debruçei a cabeça sob a mesa, e dessa vez o tempo passou rapidinho até todos voltarem à sala.
Um homem gordo e desmantelado era o nosso professor de química, colocou todos os livros na mesa e escreveu no quadro: José Texeira – química. Todos estavam rindo da sua camisa xadrez, e a enorme mancha de desodorante que ele tinha embaixo do braço. Então ele começou a passar o assunto.
Ele não parecia mal-humorado, mas era sério e não puxou qualquer outro assunto que não tivesse haver com átomos e moléculas. Haviam passado uma hora e cinquenta minutos daquela aula entediante, senti uma mão tocando meu ombro e me virei. Um menino pálido e super tímido sentado atrás de mim, estava com um papél estendido na minha direção.
“ Oi. Meu nome é Vitor. Qual é mesmo o seu?” Virada pra frente lendo aquele papel eu tive uma imensa vontade de rir daquele gesto tímido e desengonçado do ‘Vitor’. Não era justo deixá-lo sem reposta.
“ Olga.” Eu risquei bem do lado, e devolvi depressa enquanto o professor estava virado pro quadro. Não demorou muito e ele me passou o papel, dessa vez pelo lado da janela, de forma que o professor não pudesse ver. “ Você é mesmo neta do Seu Zeca?” Dessa vez eu tive que olhá-lo com aquele ar interrogativo. Realmente eu não entendia a importância de ser neta dele, naquelas últimas horas isso parecia ser tudo o que eu era. Então respondi: “Sou. Mas qual o importância disso mesmo?” Eu estava virada para ver a expressão dele ao ler minha pergunta.
- Algum problema ai? – Virei-me rapidamente para frente. Texeira gostava que todos o olhassem enquanto explicava as coisas. Fiquei muda, então ele prosseguio com a explicação.
Tocou para próxima aula, e última. Uma mulher muito bonita, era a professora de inglês. Seu nome era Josefa, ela era doce e falava o inglês muito melhor que minhas antigas professoras da cidade. Enquanto ela falava sobre como a disciplina seria aplicada aquele ano, Vitor me passou o papelzinho.
“ Ora, tudo nesse lugar isolado e estúpido gira em torno da sua plantação de flores. Sem a estufa esse lugar não existiria... Mas esqueça isso. Está gostando da ilha das flores?”
Demorei um pouco para responder, Josefa havia ligado o som com uma músiquinha em inglês e agora estava distribuindo folhas com a letra da música. Todos teriamos que cantar, assim como no jardim de infância. Achei ridículo é claro, mas todos se divertiam, mesmo achando ridículo.
“ Não é ‘minha’ estufa! E a ilha das flores é um lugar bonito, embora seja entendiante e exaustivo”
Agora estavamos todos cantando. Na verdade eu apenas fingia que cantava pra não levar outra advertência. Mas apenas mexia meus lábios. Aquilo era deploravél, e eu não queria ter que fazer. Mas tarde, Vitor respondeu:
“ Se é entendiante como pode ser exaustivo?”
Eu virei indignada para ele. Ora, ele tinha entendido o que eu quis dizer! E agora ria para mim. Não lembrava qual sua idade que ele havia dito, mas concerteza era mais novo do que eu. Era pálido, tinha olhos castanhos, e cabelo também. Então o sinal tocou.
Estava descendo a escada para o térrio, em direção a escadaria até o estacionamento onde minha mãe provavelmente estaria me esperando. Tinha perdido o Vitor de vista, agora estava olhando para Ashyla indo bem na minha frente. Estava sozinha, e ouvia música no Ipod, aliás tinha recebido várias reclamações por causa dele durante as aulas. Ela aliviou o passo, então eu estava prestes a passar na sua frente quando senti uma mão segurar meu braço. Me virei assustada.
- É amiga do nerd Vitor? – Ahyla sorria me acompanhado, e agora andando ao meu lado. De alguma forma ela conseguia me deixar nervosa. Talvez por todo aquele jeito intimidador e espontâneo, mas eu sabia que lá dentro ela devia ser apenas mais uma pessoa triste no mundo. Ela continuou:
- Olha só, ele tá ali te esperando. – Lá estava Vitor parado na escadaria para o estacionamento, me olhando com um sorriso tímido e contente.
- Oi Olga... É... Quer companhia pra descer o monte everest? – Ele disse sorrindo para esconder o nervosismo. Tudo o que eu menos precisava era de um cara desse tipo no meu pé. Bom, mas relevei. Afinal de contas na outra escola todos evitavam meu jeito isquisito, e ele não parecia estar sendo simpático por interesse. Talvez ele me respondesse algumas perguntas.
Fiz que sim com a cabeça, e nós fomos descendo. Ashyla tinha sumido do meu lado sem que eu percebesse. Vitor estava com as mãos no bolso, e cabeça abaixada enquanto desciamos devagar.
- Você morava no Rio?
- sim.
- Nossa, meu sonho. Sempre quis conhecer o Rio de Janeiro. Sabe... Prédios, civilização!
Ele riu esperançoso. Eu o olhei com admiração pela primeira vez. Não era só um pirralho timido, mas era também um cara inteligente, com sonhos. Foi falando sobre ele até chegarmos lá embaixo. Seus pais moravam na vila, mas tinham uma oficina na estrada do Rio para ilha das flores, então passavam o dia inteiro fora. Ele ficava em casa com a irmã mais nova e a avó. Tinha 16 anos, e queria ser engenheiro. Permaneci calada até lá embaixo, minha mãe já estava lá me esperando.
- Então até amanhã!
- Não quer uma carona? – Não sei se ele me olhou surpreso pela carona, ou por eu ter falado. Mas aceitou. Então entramos no carro, e ele e minha mãe foram conversando até a estradinha perto da vila onde o Vitor desceu.
- Então fez um amigo. – Minha mãe estava orgulhosa. Mas acho que como eu fiquei calada olhando pela janela do carro, as esperanças dela logo se desfizeram.